Será que a biologia explica as disparidades de gênero na área de tecnologia?

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Um funcionário do Google publicou um manifesto anti-diversidade de gênero em um fórum de discussão interno, que se tornou viral e gerou um furioso debate dentro e fora da companhia.

James Damore afirmou que as diferenças no número de mulheres e homens em empresas de tecnologia, como o Google, pode ser explicada, principalmente, por diferenças biológicas, ao invés de sexismo. Como resultado, alguns esforços de diversidade voltados para aumentar a representação de mulheres e outras minorias são discriminatórias contra os homens, conforme ele argumentou. Por conta disso, o Google demitiu Damore por perpetuar estereótipos de gêneros.

Mas o que a ciência tem a dizer sobre as diferenças biológicas entre homens e mulheres e como que isso afeta a lacuna de gênero na área da tecnologia?

“Seria tolice dizer que não existem diferenças biológicas entre homens e mulheres”, disse Margareth McCarthy, neurocientista na Universidade de Maryland, nos EUA, que estuda as diferenças de gênero no cérebro. “O sexo é a mais potente das variantes biológicas”, complementou.

No entanto, dizer que a falta de mulheres na área de tecnologia se deve por conta de diferenças biológicas seria um equívoco, já que a socialização e o sexismo são explicações mais aceitas, disseram vários especialistas.

Manifesto anti-diversidade

Em seu manifesto, James Damore afirmou que, comparadas com os homens, as mulheres, em média, são mais atraídas pela estética do que pela ideias, são mais enfáticas do que sistemáticas e mais extrovertidas e menos determinadas e competitivas. Como resultado, elas possuem mais dificuldade para negociar salários maiores, se defenderem ou pedirem um aumento.

Ele também afirmou que as mulheres mostram comportamento neurótico maior, que é manifestado através de menor tolerância em relação ao estresse e maior ansiedade, e que mulheres estão menos dispostas a trabalhar as longas horas necessárias para conseguir salários melhores e empregos com status maior. Em outra sessão de seu manifesto, Demore disse que pessoas com orientação política de esquerda negam diferenças biológicas, sendo que elas estão relacionadas com o QI e diferenças sexuais.

Cérebros diferentes

Na realidade, existem extensas diferenças neuro-atômicas entre o cérebro masculino e o feminino, na média, disse Larry Cahill, neurobiólogo da Universidade da Califórnia, em Irvine. Isso não deveria ser um supresa; afinal de contas, os humanos são mamíferos e a espécie já mostrou extensivas diferenças sexuais baseadas na química do cérebro, anatomia, genética e funcionalidades, disse Cahill.

Margereth McCarthy concordou. “Nós somos biológicamente diferentes. Seria loucura dizer que a diferença na biologia não se extende, em algum nível, para nossos cérebros. Pensar que nós, de alguma forma, escapamos de milhões de anos de evolução por que somos humanos modernos, eu penso que é apenas loucura”, disse.

Para início de conversa, as mulheres possuem mais massa cinzenta, que é onde ocorrem os nossos impulsos, coordenação de atividades musculares e reflexos, enquanto que os homens possuem mais substância branca, que conecta as células cerebrais em diferentes regiões da massa cinzenta. Homens e mulheres também possuem redes de conexões cerebrais diferentes, de acordo com um estudo de 2013. Os homens também possuem cérebros maiores do que as mulheres. E os hormônios sexuais, como a testosterona e o estrógeno, que variam dramaticamente entre homens e mulheres, também agem de forma distinta nos receptores do cérebro.

Entretanto, essas diferenças não são possíveis para “individualizar” os cérebros: um estudo de 2015 mostrou ser impossível categorizar nosso cérebros estereotipicamente como masculino e feminino, baseado apenas na massa cinzenta de certas regiões.

“Diferenças de gênero, pequenas ou grandes, não são suficientes para criar dois tipos de pessoas”, disse Daphna Joel, neurocientista da Universidade de Tel Aviv, em Israel. “Ao invés disso, cada pessoa tem um mosaico único feminino (que é mais comum em mulheres do que em homens) e masculino (que é mais comum em homens do que em mulheres) de características psicológicas”, complementou.

Comportamento similar

Os cérebros de pássaros são bem menores que os dos mamíferos e se conectam de forma diferente. Mas ainda assim, os pássaros possuem características cerebrais que são semelhantes com as dos mamíferos não-humanos mais inteligentes. Conforme dito por Margareth McCarthy, a anatomia cerebral não revela toda a história.

Além disso, muitas diferenças na estrutura dos cérebros masculinos e femininos podem, na realidade, tentar diminuir as diferenças de comportamento de cada gênero, de acordo com um estudo conduzido em 2004. As mulheres possuem dois cromossomos X, enquanto que os homens possuem um X e outro Y. Só que no cérebro das mulheres, um dos cromossomos é quase que silenciado para evitar uma dosa dupla do gene, o que significa que o cérebro de homens e mulheres expressam o mesmo número de cromossomos X, mesmo com essa diferença genética.

De qualquer forma, não existe razão para descontar a possibilidade de que diferenças anatômicas e biológicas se transformam em diferenças comportamentais, disse Larry Cahill.

“É inerentemente plausível que influências biologicamente baseadas no sexo afetam todos os aspectos do comportamento humano, incluindo as carreiras que as pessoas escolhem? A resposta é sim”, afirmou Cahill.

As afirmações do manifesto

Muitas das diferenças entre homens e mulheres que são descritas no manifesto são muito pequenas ou quase zero, segundo um estudo de 2005. Algumas, senão todas, as diferenças podem surgir por conta da socialização ao invés da biologia, conforme dito por vários especialistas.

Uma questão é a cultura dos países. Nos Estados Unidos, por exemplo, os homens são melhores que as mulheres em um teste padronizado de matemática, enquanto que no Japão, os dois sexos tiveram desempenhos semelhantes e se saíram melhor que seus amigos americanos. Já nos países nórdicos, foram as mulheres que tiveram um desempenho melhor que os homens nesse mesmo teste, segundo McCarthy.

Disparidades similares em ciência contra leitura existem em diversos países, segundo Bernd Frick, professor da Universidade de Paderborn, na Alemanha. “As meninas aprendem que habilidades de leitura são importantes. Meninos aprendem que ciências são importantes, e você vê isso refletido em testes padronizados com crianças de 8 ou 9 anos ou 10 a 12 anos”, disse.

No entanto, sociedades mais patriarcais possuem uma enorme lacuna no resultado desses testes, enquanto que culturais mais igualitárias apresentam diferenças bem menores. Assim, Frick sugeriu que diferenças culturais são mais incisivas nessa questão do que as diferenças cerebrais e biológicas.

Já a respeito da média de inteligência das mulheres contra os homens, não existe uma grande diferença. “Isso já foi mostrado várias e várias vezes com milhões de informações que já foram retratadas”, disse McCarthy.

Mulheres costumam exibir maiores indíces de diagnóstico de certos tipo de doenças neuropsiquiátrcas, como depressão, ansiedade e transtorno obessivo compulsivo. No entanto, a diferença de gênero para a ansiedade é bem pequena se comparada com diferenças envolvendo outras enfermidades, como anorexia nervosa e autismo. Os homens não possuem o  costume de procurar um diagnóstico e também têm o hábito de se automedicar com drogas e álcool, o que significa que, pelo menos, parte das diferenças de gênero nas taxas de depressão e suicídio acontecem por conta dessa “teimosia” dos homens em procurar tratamento, e não uma resposta diferente ao estresse, comentou McCarthy.

Além disso, diferenças de gênero podem aumentar ou diminuir com o passar dos anos da vida do indivíduo, o que pode dificultar ao indicar os efeitos da socialização contra a biologia. Por exemplo, meninas costumam ser mais agressivas e assertivas na infância, mas esse comportamento vai diminuindo conforme a adoslecência vai chegando.

Outro trabalho mostrou que as mulheres costumam ser menos competitivas que os homens, na média. Mas um estudo conduzido em 2011, feito com ultramaratonistas, mostrou que sociedades mais igualitárias e que competições que oferecem prêmios em dinheiro semelhantes para homens e mulheres praticamente acabam com essa falta de competitividade feminina.

“É tudo uma questão de cultura”, disse Frick.

Outras explicações para as diferenças na tecnologia

O manifesto de Demore, no entanto, é falho quando tenta explicar que as diferenças de sexo na tecnologia possuem razões biológicas , quando outros fatores como sexismo e estruturas familiares ultrapassadas claramente possuem muita influência, disse McCarthy.

Diversos estudos já mostraram que uma maneira poderosa de atrair mais mulheres para cargos de liderança é justamente ter mais mulheres nos papéis de líder, disse McCarthy. Então, a escassez feminina na área pode criar um ciclo vicioso de baixa representatividade.

Outra questão é que as mulheres não querem, de forma proposital, trabalhar menos horas. A razão é que elas também um segundo papel como mãe e responsáveis por cuidar da casa, por exemplo. “Elas possuem dois empregos”, disse McCarthy.

E o sexismo na área de tecnologia não é algo benigno, segundo Larry Cahill.

“Eu sempre escuto sobre a ‘cultura dos irmãos’ (na tecnologia). É provavelmente o caso de que as mulheres, em média, se irritam muito mais com esse cultura do que os próprios homens”, disse Cahill.

Para complementar, nenhum estudo conseguiu comprovar que habilidades e traços de personalidade necessários para empregos na área de tecnologia são unicamente masculinos. Nenhuma pesquisa sugeriu que ser agradável, simpático ou extrovertido (qualidades que Demore disse que as mulheres não possuem) são coisas obrigatórias para trabalhar no campo da tecnologia, disse McCarthy.

“Se o Google precisasse apenas de pessoas com muitas características masculinas, então seria mais viável chamar apenas candidatos masculinos do que candidatas femininas. Mas até mesmo no campo tecnológico, existem diferentes combinações de características (algumas mais comuns em mulheres e outras em homens) que se encaixam, então essas diferenças cerebrais entre os dois sexos não são suficientes para explicar as lacunas de gênero na área de tecnologia”, disse Daphna Joel.

Fonte: Live Science
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