Os 50 anos do AI-5, que suspendeu garantias legais no Brasil

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Os brasileiros tomaram conhecimento do Ato Institucional de número 5 (AI-5) pelo anúncio do ministro da Justiça, Luis Antônio da Gama e Silva. Era noite de sexta-feira, 13 de dezembro de 1968. Fora Gama e Silva que redigira o documento, suspendendo garantias constitucionais e fechando o Congresso por tempo indeterminado.

Ele assim permaneceria até outubro do ano seguinte, quando reabriria – expurgado pela cassação de 98 deputados e 5 senadores – para referendar uma nova Constituição com mudanças, como a adoção da pena de morte.

Um dia antes, a Câmara dos Deputados negara por 216 votos a 141 a licença para o governo processar o deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, por seus discursos, considerados ofensivos às Forças Armadas. Vindo da casa da namorada, na Água Branca, na zona oeste, o professor de Direito Constitucional da USP José Afonso da Silva dirigia seu Fusca com o rádio ligado quando um locutor começou a ler o texto.

“Fiquei tão horrorizado com aquilo, porque é o instrumento mais violento que o País já teve, de certo modo, mais violento do que a Constituição do Getúlio Vargas. Dava um poder tão grande para o presidente fazer o que queria. E eles fizeram o que queriam, usaram e abusaram do Ato largamente, praticando os mais absurdos atos de autoritarismo.”

Horas antes, o prédio do jornal ‘O Estado de S. Paulo’, no centro, fora invadido por policiais que aprenderam sua edição em razão da recusa de Julio de Mesquita Filho de se submeter à ordem de trocar o editorial Instituições em Frangalhos. Começava a censura ao jornal.

Vinte anos depois, José Afonso estaria entre os assessores do senador Mário Covas, líder do PMDB, que ajudaram a sistematizar e redigir a Constituição de 1988. Para ele, a atual Carta é um “espelho invertido” do AI-5. A visão de que o arbítrio da ditadura militar engendrou a luta que se concluiu na promulgação da nova Constituição é compartilhada por outros juristas que lutaram pela redemocratização do País.

“Ela é o grande reverso do arbítrio. Garantiu direitos e valorizou como nenhuma outra no mundo os operadores do direito”, diz o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Francisco Rezek. Estudante de Direito, ele estava no meio do Atlântico, no navio Augusta, voltando ao Brasil após a primeira fase do doutorado na Sorbonne, em Paris, quando o comandante anunciou aos brasileiros a novidade. Eram quatro homens e três mulheres. “Alguns pensaram em não desembarcar.” Rezek seguiu para Minas. “O AI-5 desvelou por completo a face do regime, inaugurando uma ditadura escancarada.”

O que tornava o AI-5 diferente dos Atos anteriores não era a licença para cassar mandatos e direitos políticos ou para aposentar compulsoriamente magistrados, professores, militares, mas a suspensão de garantias, como a do habeas corpus, para acusados de delitos políticos e econômicos, além de retirar da Justiça a possibilidade de apreciar quaisquer atos do governo baseados no AI-5.

Dezesseis ministros assinaram o documento, além do presidente Costa e Silva. Era a reação de um governo acuado por protestos estudantis, greves operárias e críticas da imprensa.

Ao aumento da oposição, o governo reagia com prisões, como a dos 720 estudantes no congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna, no interior paulista. Alunos do Mackenzie vinculados ao Comando de Caça aos Comunistas enfrentavam estudantes de esquerda da Faculdade de Filosofia da USP, na Rua Maria Antonia, no centro.

A batalha começou em 2 de outubro e acabou no dia seguinte, com o incêndio da prédio da Filosofia, atacado por coquetéis molotov lançados do Mackenzie. Dias depois, homens da Ação Libertadora Nacional (ALN) e da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) executaram o capitão americano Charles Chandler, em São Paulo. Parte da esquerda pegava em armas contra o regime.

No Rio, a agitação estudantil crescera após o assassinato do estudante Edson Luis, quando a polícia invadiu um restaurante estudantil. No dia seguinte, 50 mil marcharam contra o regime. Em 21 de junho, nova manifestação terminaria com 4 mortos – um era policial. Cinco dias após, 100 mil sairiam às ruas em protesto. “Nossos alunos têm razão”, dizia uma das faixas. No mesmo dia, em São Paulo, a VPR lançou um carro-bomba contra o quartel do 2.º Exército, matando o soldado Mário Kozel Filho.

Belisário dos Santos Junior era um jovem estudante de direito quando ouviu com amigos a decretação do AI-5. Estava em um bar na Rua Iguatemi, no Itaim Bibi, na zona oeste, tomando um sorvete. O Ato fez dele um defensor de presos políticos.

Ele mesmo acabaria detido pelo Destacamento de Operações de Informações (DOI), do 2.º Exército, por causa de um documento que denunciava torturas impostas aos criminosos comuns do Presídio Tiradentes. Os interrogadores não lhe perguntaram nada sobre a petição assinada com outros sete advogados e enviada à Justiça Militar. “Só queriam saber quem nos pagava para fazer aquilo.”

A denúncia contra os advogados partira do juiz auditor Nelson Machado Guimarães, que recebera a petição. O grupo compareceu diante do Superior Tribunal Militar (STM), ainda no Rio, defendido pelo advogado Heleno Fragoso. “Senhores, em São Paulo, terrorista é a Justiça Militar”, disse Fragoso aos ministros do STM, que confirmaram a libertação de todos.

Belisário se juntaria à luta pela anistia e pela Constituinte. “A Constituição é o momento de afirmação dos direitos e garantias. Antes, estavam no artigo 153. Com a nova carta passaram a ocupar o artigo 5.º, o que mostra a prioridade que receberam.”

Outro advogado que conheceu a prisão após o AI-5 foi Eros Grau. Era 1970 quando ele foi preso pela segunda vez – a primeira fora pouco após o golpe de 1964. Durou três dias. Grau era suspeito de ligações com o Partido Comunista Brasileiro, crime previsto na Lei de Segurança Nacional (LSN), que podia ser punido com até 2 anos de cadeia.

O empresário Dilson Funaro, então secretário de Planejamento do governador Abreu Sodré (Arena) pediu ao chefe a libertação do amigo. “Ele disse que ‘ou me soltavam ou se demitiria.’” Eros foi solto. “Perdi a chance de viver na França…” O então advogado da classe teatral se tornaria ministro do STF.

“A Constituinte de 1988 rasgou tudo o que existia antes. Como no poema de Álvaro Moreyra: ‘A vida está toda errada/Vamos passá-la a limpos?’ Ela passou a limpo o passado. Virou aquela página. Ela significa o nascimento do novo.”

Vencidas as organizações que se opunham pelas armas, o regime iniciou a abertura. O AI-5 acabaria revogado em 1978 pelo presidente Ernesto Geisel. O último presidente do ciclo militar, João Figueiredo, assumiu prometendo “prender e arrebentar” quem fosse contra a redemocratização. Não fez uma coisa nem outra. Governaria até entregar o poder aos civis.

“A Constituição (de 1969) estava comprometida com o autoritarismo. Um remendo não daria a ela a visão que se tinha de adotar para a democratização do País. A eleição do Tancredo Neves, com seu discurso de Maceió, da Nova República, era a proposta para liquidar com os tais entulhos autoritários”, diz José Afonso. Com a morte de Tancredo, caberia ao vice, José Sarney convocar a Constituinte. Quatro anos depois, em 1988, estaria pronta a nova Constituição.

50 anos de AI-5

Cinquenta anos depois, o AI-5 ainda divide opiniões no País – se os juristas e a imprensa são unânimes no repúdio ao arbítrio, muitos militares ainda consideram que o contexto da época justificava a sua imposição.

O decreto do Ato Institucional que contou com a assinatura de 16 ministros e do presidente, o general Costa e Silva, marcaria profundamente a Nação. Não apenas em razão das cassações de mandatos de parlamentares, pela censura de 500 filmes, 950 peças de teatro, 200 livros, 500 letras de música, mas pela suspensão de garantias fundamentais, como o habeas corpus para crimes contra a Segurança Nacional e a Ordem Econômica e Social.

Uma década depois, quando foi suspenso, a repressão do regime militar já havia feito mais de 400 mortos, provocado o exílio de cerca de 7 mil brasileiros e submetidos outros 20 mil a sevícias e maus-tratos nas cadeias e porões da ditadura.



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