Arte e até perfume: inteligência artificial já executa trabalho criativo

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Você usaria um perfume criado por alguém incapaz de sentir cheiros? E se esse alguém for uma máquina? A partir do ano que vem, essa é a pergunta que a rede O Boticário vai fazer aos brasileiros: a empresa pretende lançar no mercado dois perfumes cujas fragrâncias foram criadas com ajuda da Phylira, sistema de inteligência artificial (IA) da IBM.

Esse é apenas um dos muitos exemplos de utilização de computadores em tarefas criativas – eles também já estão presentes em atividades como música, literatura e artes plásticas borrando a fronteira entre o humano e o artificial.

No caso d’O Boticário, que trabalhou em parceria com a IBM e a casa perfumista alemã Symrise, a intenção era usar as máquinas para criar dois perfumes unissex, voltados para o público jovem.

“Ensinamos o computador o processo de criação de uma fragrância e inserimos dados sobre as mais de 3 mil matérias primas que usamos nos perfumes”, conta Jean Bueno, gerente de perfumaria da empresa. A inteligência artificial também recebeu informações sobre vendas e recepção do público nos últimos anos – afinal, a ideia era criar a fórmula perfeita.

O resultado, diz Bueno, surpreendeu: uma das fragrâncias, com perfil mais fresco, preferido pelo público masculino, continha jasmim – um ingrediente normalmente usado em perfumes mais adocicados. “Nós nunca usaríamos jasmim numa fragrância masculina, mas deu certo”, afirma.

A empresa também viu vantagens no tempo de criação dos produtos, com lançamento previsto para o primeiro semestre de 2019: foram cinco meses de trabalho – normalmente, uma fragrância leva pouco mais de um ano para ser totalmente desenvolvida. Mas o próprio especialista reconhece: “98% do trabalho foi da máquina, mas os 2% do perfumista foram fundamentais. É a sensibilidade dele que dá o toque final”, diz o executivo d’O Boticário.

É o tipo de frase que faz respirar aliviado, ao menos por agora, quem tem medo de ser substituído no trabalho por um robô – uma realidade já no horizonte de atendentes de telemarketing, motoristas de táxi e recepcionistas.

“Já está claro que a inteligência artificial vai poupar os humanos de fazer tarefas chatos e repetitivos”, explica Janelle Shane, pesquisadora independente de inteligência artificial e algoritmos. “Por outro lado, ela será uma ferramenta poderosa para quem precisa fazer trabalhos criativos, da mesma forma como câmeras fotográficas foram há cem anos.”

Parceiro de inteligência artificial

O grupo de artistas Botnik Studios, que há anos pesquisa o uso de IA para a criação de textos, é um dos que aposta nessa “parceria”. Um de seus experimentos mais conhecidos é o Voicebox, sistema que sugere palavras para um escritor, de forma semelhante ao que acontece em smartphones hoje.

A diferença é que o Voicebox parte de uma biblioteca específica de conteúdo – como os livros de Harry Potter ou receitas de panquecas, por exemplo. “A grande vantagem de usar a inteligência artificial para criar algo novo é poder se sentir acompanhado de um parceiro de ideias”, diz Elle O’Brien, cientista chefe do grupo, ao Estado. “O Voicebox em si não é arte, mas as pessoas conseguem criar arte com ele.”

Outro caso curioso é o do grupo francês Obvious, que vendeu há pouco mais de um mês a primeira obra feita por uma inteligência artificial em um leilão de artes. Realizado pela casa Christie’s, o retrato Edmond de Belamy, from La Familie de Belamy foi arrematado por US$ 432,5 mil – mais do que obras de Andy Warhol e Roy Lichteinstein oferecidas na mesma ocasião.

O quadro, da mesma coleção da pintura que se vê nesta página, foi gerado por uma máquina após ser exposta a inúmeros retratos, feitos entre os séculos XIV e XX. “Se eu fechar um olho, até parece um Rembrandt”, comentou a historiadora da arte Frédérique Baumgartner, sobre a obra, ao New York Times.

Imitação ou limitação?

A comparação com as obras do pintor holandês não é descabida – e evidencia as limitações de sistemas que usam a tecnologia de aprendizado de máquina para atuar criativamente. Em todos os casos acima, o funcionamento é parecido: primeiro, é preciso que um ser humano “ensine” à plataforma as regras do que se quer aprender.

Depois, esse sistema precisa ser alimentado com uma biblioteca de conteúdo – sejam textos, imagens ou “cheiros”. Com essa biblioteca, a máquina pode aprender padrões e imitá-los, mesmo que de forma rudimentar (leia mais abaixo). Há quem diga que esse processo é suficiente para dizer que uma máquina é criativa. Para Luís da Cunha Lamb, especialista da Sociedade Brasileira de Computação (SBC), não é bem assim.

“Hoje, o desafio maior da inteligência artificial é fazer inferências sobre o que aprendeu”, diz “Ainda não temos um sistema capaz de, por exemplo, fazer o que artistas impressionistas fizeram ao retratar, de forma diferente, a realidade que já conheciam. Não vejo uma inteligência artificial criando uma escola artística num futuro próximo” Para ele, o entendimento da inteligência artificial para cada tipo de atividade está em estágios diferentes – a área da música, crê Lamb, é uma das mais avançadas.

A se julgar pelo sistema da startup inglesa Jukedeck, é mesmo: a empresa, fundada em 2012, tem uma inteligência artificial à qual é possível “encomendar” uma trilha sonora para um vídeo, a partir de parâmetros como estilo musical e momento de clímax. Canções feitas pela empresa já apareceram em mais de 30 mil vídeos, incluindo reportagens da agência Bloomberg. “Somos uma ferramenta de democratização da música, especialmente para quem quer compor, mas não sabe o que é um acorde. A máquina executa, mas cabe ao criador fazer os ajustes”, diz Patrick Stobbs, cofundador da startup.

Para Janelle Shane, a inteligência artificial será sempre uma ferramenta e nunca uma força criadora sozinha – a despeito dos temores de gente como Elon Musk. O fundador da Tesla é um dos que receiam que as máquinas se tornem tão capazes que decidam se voltar contra os seres humanos. A especialista não crê nisso: “cabe ao humano ter uma ideia, curar o conjunto de dados e avaliar o que a máquina produziu, fazendo ajustes”. Elle O’Brien, do Botnik, vai na mesma linha. “A máquina até pode criar, mas só o humano vai conseguir interpretar se aquilo é bom ou não.”

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