“Eu não sei como começar isso”, disse Adele, em uma carta online escrita para seus fãs no último dia 30 de junho. Na noite anterior, ela participou do segundo de quatro show agendados no Estádio de Wembley. Seria a conclusão de uma turnê com 123 datas e que foi bem sucedida. Mas algo saiu errado.
“Eu lutei vocalmente nas duas noites”, escreveu. “Tive de me esforçar mais do que normalmente faço. Sentia que precisava constantemente limpar minha garganta”. Após o segundo show, Adele consultou seu médico, que disse que ela havia danificado suas cordas vocais e que não teria outra opção a não ser cancelar seus demais shows. Uma das vozes mais poderosas do mercado musical se silenciou.
Apesar de ter apenas 29 anos, não é a primeira vez que isso acontece com Adele. Seis anos antes, ela sofreu uma hemorragia em suas cordas vocais enquanto se apresentava ao vivo em um programa de rádio francês. Para conseguir reparar a lesão, se submeteu a uma cirurgia delicada e de alto risco: a microcirurgia de cordas vocais. Ela remove qualquer tecido danificado que prejudica a elasticidade das cordas, o que pode resultar na perde do timbre, alcance e clareza da voz.
A margem de erro em cirurgias dessa natureza é medida em milímetros. O cirurgião não pode deixar os instrumentos tocarem qualquer tecido saudável. O doutor Steven Zeitels, que fez a intervenção em Adele, sabia que poderia retirar o poder e a elasticidade das cordas vocais da cantora.
Adele foi tão grata que quando recebeu, em fevereiro de 2012, seis prêmios Grammy, ela agradeceu Zeitels por ter recuperado sua voz. Muitos encararam como uma grande volta por cima, mas especialistas ficaram preocupados. Por anos, a microcirurgia de cordas vocais sempre foi considerada perigosa. Além dos riscos físicos, muitos cantores temem que isso encerre suas carreiras. No mundo do showbusiness, é melhor ser um cantor com uma voz jovem e saudável do que um artista renomado, mas com cordas vocais reparadas cirurgicamente.
Mas a verdade é que existe uma epidemia de sérias lesões nas cordas vocais de artistas. Além da cirurgia em Adele, Zeitels já operou mais de 700 artistas, como Sam Smith, Lionel Richie, Bono e Cher. Michael Bublé, Keith Urban, Meghan Trainor e Celine Dion também precisaram interromper turnês para fazer cirurgias em suas cordas vocais.
Não existem informações e números precisos a respeito de artistas que precisaram ir pra a sala cirúrgica. Mas diversos cirurgiões estimam que diversos ícones do pop, rock e música clássica, além de atores de peças musicais, precisaram fazer alguma intervenção dessa natureza em algum momento. Shows cancelados se tornam assunto em redes sociais e atingem a indústria musical. Quando Adele cancelou os dois últimos shows de sua turnê, os organizadores precisaram devolver o dinheiro de 200 mil pessoas. E já é uma incógnita se ela conseguirá fazer outra turnê novamente.
Zeitels até mesmo se tornou uma celebridade em 2011 após fazer a cirurgia de Adele. Mas uma pessoa da indústria musical não concordou muito com isso. Lisa Paglin, ex-cantora de opéra que se tornou professora de voz, afirmou que o cirurgião apenas fez algo temporário e que, em um futuro não tão distante, Adele teria de retornar para a sala de cirurgia.
“Quantas cirurgias o Doutor Zeitels pensa fazer em Adele? Ou qualquer um? Após a cirurgia, a menos que um cantor faça grandes mudanças, ‘voltar a se apresentar’ significa retornar ao abuso vocal que o colocou na mesa de cirurgia, em primeiro lugar. Shows – lesões – cirurgia – descanso – shows – lesões – cirurgia. É essa a vida de um cantor profissional?”, disse Paglin.
Por mais de uma década, Paglin e Marianna Brilla, sua parceira de profissão, tentam implementar um método revolucionário para que os profissionais aprendam a utilizar suas vozes. Elas garantem que podem entregar algo que a ciência não consegue: um reparo permanente para cordas vocais desgastadas.
Essa solução requer reviver um método de canção relativamente esquecido que não é apenas bonito para nossos ouvidos, mas que causa danos mínimos à garganta. Mas essa “cura” tem uma certa controvérsia. Ela é baseada em uma teoria bem provocativa que começa a ganhar terreno: que todos nós cantamos completamente errado, até mesmo Adele.
Mercado e profissão difícil
Cantar é um negócio difícil. Qualquer desempenho vocal envolve centenas de milhares de microcolisões na garganta. As cordas vocais são um par de finas tiras musculares localizadas na laringe. Elas possuem formato de triângulo invertido e possuem as concentrações mais densas de tecidos nervosos do nosso corpo.
Quando estamos quietos, as cordas ficam juntas para facilitar a respiração. Quando falamos ou cantamos, o ar dos pulmões fazem as cordas vibrarem, criando o som de nossas vozes. Quanto maior a vibração, maior é o tom da voz. O soprano, o maior alcance vocal que existe, faz as cordas vocais vibrarem mais de mil vezes por segundo, o que é poderoso o suficente para quebrar vidro.
Mas nem é preciso dizer que por mais que esse canto seja bonito, causar tantas vibrações resultam em pequenas contusões. E após anos de uso, nódulos, pólipos e cistos podem se formar nas cordas vocais, distorcendo o som que elas podem causar. Para um cantor, o primeiro sinal de problema é a trepidação, quando as cordas perdem a habilidade natural de vibrar e ressoar.
O mundo da ópera entrou em choque com três incidentes recentes, nos quais os tenores Rolando Villazón, Aleksandrs Antonenko e Roberto Alagna precisaram deixar o palco no meio de suas apresentações, sem chance de retornar. E muitos cantores dessa área reclamam de sintomas que chegam a durar um ano e que esteróides e até mesmo drogas já foram utilizadas para ajudar um profissional que está enfrentando problemas.
Especialistas em voz afirmam que cantores e atores de musicais precisam encarar algo semelhante a atletas profissionais. Uma cirurgia nas cordas vocais é semelhante com aquelas necessárias para reconstruir os ligamentos do joelho de um jogador de futebol, por exemplo. Sem falar que ar condicionado, poeira, hábitos equivocados de alimentação e de sono e o estresse também afetam as cordas vocais.
Em 1986, o crítico musical Will Crutchfield, do jornal The New York Times, lamentou que o problema estava acabando com a carreiras de tenores e diminuindo o poder da ópera. Crutchfield notou que muito cantores conseguiam ir até os 30 anos antes de entrar em declínio. Mas Adele, Trainor e Smith já precisaram de cirurgias com seus 20 e poucos anos. E o problema afeta até amadores. Uma professora de música já disse que recomendou uma estudante, de apenas 10 anos, para parar de cantar após danificar suas cordas vocais e consultar um especialista.
Essas lesões são ligadas a mudanças no que consideramos cantar bem. Atualmente, acredita-se que quanto mais alto, melhor. Por conta disso, cantores levam suas cordas vocais até o limite, o que acaba causando o problema.
O que é mais preocupante é que o abuso vocal está se tornando supreendentemente comum em profissões que precisam de voz, como em professores, por exemplo. A ciência sobre o problema está crescendo, mas o caso de Adele e alguns estudos já concluíram que a cirurgia não é necessariamente a solução.
Brilla e Paglin já afirmam isso há anos. “Você não pode solucionar o problema apenas aliviando os sintomas”, disse Brilla. “É um problema motor. O cantor precisa entender a maneira em que funciona seus motores. Se você não a consertar, irá acontecer de novo”, complementou.
Problema para outras profissões
Com dito um pouco acima, não são apenas cantores que tem suas carreiras ameaçadas por cordas vocais deterioradas. Em 1989, a atriz italiana Maddalena Crippa perdeu momentaneamente sua voz enquanto participava de uma peça baseada em um dos trabalhos de William Shakespeare. Foi a primeira vez que isso aconteceu com a atriz. “O sofrimento que tive foi indescritível”, disse.
O sofrimentou durou mais de uma década. A voz de Crippa não tinha mais a mesma sonoridade e uma dor terrível tomou conta de sua garganta. Posteriomente, ela descobriu que tinha diversos nódulos em suas cordas. Injeções de cortisona e exercícios a ajudaram a retornar aos poucos, mas sua confiança estava em baixa. Foi aí que visitou o estúdio de Brilla e Paglin para conseguir ajuda.
Diferente de médicos, Brilla e Paglin não utilizam um laringoscópio para ver a gargante de seus “pacientes”. Ao invés disso, utilizam suas vozes. Elas cantam um nota baixa e pedem para o estudante repetir precisamente. Assim, conseguem descobrir o local da lesão.
Quando Crippa disse um simples oi, Brilla e Paglin já perceberam que havia algo de errado com sua voz. Ela, por exemplo, precisava respirar fundo antes de falar. As especialistas já viram esse mesmo problema com outros cantores: suas cordas vocais se acostumaram tanto a utilizar grandes quantidades de ar que elas não respondem sem que seja utilizada uma força semelhante.
Após muito tempo de tratamento, incluindo diversos protestos e reclamações, Crippa conseguiu reproduzir, pela primeira vez em anos, um tom mais “normal”, o que a fez chorar de emoção. “Eram lágrimas de alegrias. Era a minha voz”, disse Crippa.
Brilla e Paglin afirmam que conseguem restaurar problemasnas cordas vocais naturalmente, com exercícios que “massageiam’ e solucionam os problemas nas cordas com o tempo. O objetivo é estimulá-las nos locais em que não se encontram apropriadamente e acabar com maus hábitos. Respirar muito fundo, tensionar o garganta e os músculos da mandíbula, abrir a boca exageradamente e a necessidade de querer cantar notas maiores são alguns deles.
Também existem limites para o que Brilla e Paglin podem fazer. Por exemplo, Paglin viu um cantor no palco e logo percebeu que ele tinha algo de errado. Ela lhe enviou uma mensagem de que deveria visitar um médico, e acabou diagnosticado com uma espécie de câncer na garganta. Mas a capacidade que as duas possuem que solucionarem casos difíceis já fez com que Brilla e Paglin ganhassem pequena reputação internacional.
Solução permanente?
Com tudo isso apresentado, a questão é: será que os métodos de Brilla e Paglin podem curar, permanentemente, uma artista como Adele e ensiná-la a cantar de forma mais natural? Steven Zeitels não acredita muito nesse tratamento e defende Adele e seus outros clientes da ideia de que não sabem cantar. “As pessoas pensam que se você precisa de uma operação, significa que você não sabe cantar. As pessoas que eu vejo, elas sabem cantar!”, disse.
Terapeutas vocais especialmente treinados também já conseguiram melhorar a saúde das cordas vocais de seus pacientes, mas os especialistas médicos acreditam que essa rota só funciona para casos menores, como pequenos nódulos. Caso contrário, recomendam a cirurgia. “Quanta ironia. Existe uma indústria construída em torno de cantores que se machucam enquanto cantam, e existe outra feita para curá-los”, disse Paglin.
Robert Sataloff, que já fez cirurgias em diversos vencedores do Grammy, diz que a opção cirúrgica não é a melhor para a saúde das cordas vocais de cantores. Uma combinação entre educação apropriada e os perigos de técnicas equivocadas é a melhor forma para garantir que muitos artistas permaneçam nos palcos por muito tempo.
Alguns professores de conservatórios na Itália não acreditam nos métodos de Brilla e Paglin e os consideram “hereges”. Por conta disso, elas criaram algumas inimizades. As duas foram dar algumas aulas no Conservatorio di Musica Santa Cecilia, em Roma, e enquanto que muito estudantes gostaram do que viram, muitos professores não as queriam por perto. Edda Silvestri, antiga diretora da escola, acredita que tal animosidade surgiu por conta da introdução de algo novo em um local normalmente conservador.
De sua parte, Steven Zeitels está trabalhando em uma forma futurista de consertar a disfonia. Qualquer profissão que depende da voz está vulnerável a rouquidão. Uma das inovações patenteadas de Zeitels é aplicar uma espécie de gel nos tecidos de cordas vocais danificadas para restaurar sua flexibilidade.
Mas muitos estudantes de Brilla e Paglin conseguiram resultados sem tais intervenções, incluindo a própria Maddalena Crippa, que retomou sua carreira aos 59 anos. Suas cordas vocais nunca mais se lesionaram desde que começou a trabalhar com as duas há 15 anos. Recentemente, começou a atuar em uma peça, na qual a crítica se impressionou com seu desempenho, sendo que um crítico afirmou que Crippa ainda era “uma cantora brilhante.”
Quando a notícia do cancelamento dos dois shows finais de Adele foi divulgada, Paglin ficou preocupada com a ideia de que a mensagem para a cantora era de que uma segunda ou terceira cirurgia seria o suficiente para fazê-la retornar aos palcos.
Paglin lamentou o novo problema da cantora e ofereceu ajuda. “Nós sabemos como reparar os problemas de Adele (sem cirurgia). Se nós pudessemos falar com ela”, disse.